A tia Maria André tinha medo de dormir em casa
sozinha. Quando o tio Elias partia para a sua viagem anual ao Porto para visitar
amigos, um luxo na Madeira dos anos 70 e 80, ela pedia à minha mãe que me
deixasse ficar com ela. Dormiria na cama de solteira, ao lado da cama do casal.
Nascida em 1913, a tia Elias (como era conhecida entre nós) tinha uma
mentalidade muito aberta. Muito mais que muitos dos jovens de hoje. Tinha uma figura esguia e
língua bem afiada, mas não para maldizer ou falar da vida dos outros. A tia
Elias usava esse à vontade para dizer sempre o que pensava e para dar conselhos.
E dava muitos.
Hoje lembrei-me dela porque o meu homem fez ontem um prato ao jantar, que repeti ao almoço, que tinha o sabor dos seus cozinhados.
Doces, apurados, bem cozidos, ricos, tradicionais, únicos.
A tia e o tio Elias não tiveram filhos. Não conseguiram.
Para compensar, adoptaram os sobrinhos e os sobrinhos netos, como eu, e davam-nos
bolachas e ovos escalfados ainda moles, produção das galinhas caseiras que andavam pelo quintal.
Quando ia para lá dormir, nós rezávamos as duas e
adormecíamos ao sabor das ondas. Deitada na cama conseguia ouvir o rebentar das ondas do mar, e o cheiro a maresia se misturava com o barulho
dos motores dos barcos de pesca. A sua casa ficava a 10 ou 15 metros da praia.
Ao raiar do dia, a tia preparava uma chávena de café Mokambo
com leite e servia fatias do seu pão caseiro. E como eu adorava o seu café com leite e o pão caseiro. O cesto do pão ficava pendurado num gancho que saía do tecto, a sala de jantar era baixa.
Desde que a tia partiu nunca mais lá voltei. Acho que não consigo ou se calhar
não quero. A casa foi herdada por uma das suas sobrinhas e está fechada.
No fundo, prefiro guardar as memórias de infância: uma casa cheia, perfumada pelos seus
cozinhados e pelo pão com batata doce que ela amassava e cozia nas tardes de domingo.
Tia Elias faz-me lembrar pao de casa ao domingo de manha depois da missa das 11h e as bolachas da fabrica Santo Antonio com Marmelada.
ResponderEliminarSabores da minha infancia, que saudades... Adorei quando li o teu texto, fez-me viajar por um tempo ja tao distante.
Regina.
E serás a Regina que é a minha prima/mana que também comia os ovinhos e as bolachas? :) Beijinhos
ResponderEliminarComo é bela a mensagem da Rubi.
ResponderEliminarComo é bom recordar.
Um sabor, um odor ou uma brisa faz-nos recordar momentos da nossa infância. É verdade. Por vezes, num determinado instante, a minha memória surpreende-me e oferece momentos da minha infância... Saudades da minha terra, saudades da minha Benguela.
A voz melancólica de Cesária Évora traduz bem esses momentos... "Sodades, sodades... Sodades destminha terra S. Nicolau..."
Micael: é verdade. E, invariavelmente, põem as nossas emoções ao rubro. Estas lembranças trouxeram à minha memória muitos outros episódios. Um grande baú!
ResponderEliminar