Geração André
 
                  25 de Dezembro. Foi o último dia do André na redacção.  Sentou-se à mesa, no bar, como se fosse ficar ali para sempre. Como se  aquela fosse a sua casa. Como se a dedicação e o brilhantismo de seis  meses de estágio fossem suficientes para garantir um lugar entre nós.
O André foi o melhor estagiário que passou por aquela redacção desde  que cheguei. O André trabalhou dia e noite, fez sábados, domingos e  feriados. Dispensou folgas, esqueceu horários, correu, transpirou,  apanhou chuva, frio e voltou sempre com aquele sorriso de quem ama o  jornalismo. O André fez reportagens brilhantes: entrevistou ministros,  pescadores, sem-abrigo, artistas de circo, sempre com o mesmo rigor, a  mesma dedicação, o mesmo profissionalismo. O André aprendeu a editar, a  legendar, a sonorizar e a escrever como poucos. O André será um grande  jornalista deste país, se o país deixar. O André foi-se embora no dia de  Natal, depois de mais uma jornada de intenso trabalho na redacção.  Acabou o estágio.
A crise. A crise. A “crise diz” que não há espaço para o André numa  empresa com nove milhões de lucro. O André não é bom. O André é muito  bom. Mas ser muito bom não chega num país liderado por medíocres. E é  este o drama da geração do André. Esqueçam esse eufemismo da “geração à  rasca”. Esta é a geração sem futuro num país liderado por uma geração  parida pelas “vacas gordas” do cavaquismo à qual o guterrismo deu de  mamar. É esta, sim. É esta a geração que mostrou o rabo indignada contra  o aumento de meia-dúzia de tostões nas propinas. Tão rebeldes que eles  eram.
Chegou ao poder a geração do “baixa as calças”, a geração jota. É a  mesma coisa. Quando não havia emprego, sobrava o partido. Quando não  havia partido, sobrava o amigo do partido, ou uma sociedade de  advogados. E foi andando assim, nos anos loucos do Portugal do  “Progresso” de Cavaco Silva, ou no país da “Razão e Coração” de  Guterres. Foi-se o Progresso, ficou o monstro do Estado cheio de  parasitas. Faltou a razão e o coração começou a vacilar. Já instalada  nos corredores do poder, a geração habituada a baixar as calças,  indignada claro, calou-se e deixou-se embalar. O poder… O poder ali tão  perto.
Hoje, é a geração que cresceu no tempo das “vacas-gordas” que vem  falar de flexibilização laboral. Que fale. Que avance para a reforma do  mercado de trabalho, sem medo, mas que entenda que isso só faz sentido  se for para proteger os “Andrés” deste país. O problema é que a geração  do poder, habituada a baixar as calças, fala pelos livros: leu por aí  qualquer coisa sobre isso. Sopraram-lhe.
É disso que os abutres gostam: de quem baixa as calças e não sabe muito bem do que fala. É aqui que mora o perigo.
A reforma da legislação laboral deve ser feita em nome dos miúdos  como o André e não para desafogar empresas que em dez anos acumularam  mais de 500 milhões de lucro. O ponto de honra tem de ser outro:  valorizar o mérito e conceder oportunidade a quem mostra que tem valor.  Dói? Vai doer a alguém, claro. Vai doer a quem está há anos encostado,  por preguiça, a fazer os serviços mínimos na empresa, a quem não  acrescenta valor, a quem não veste a camisola, nem está disposto a  inovar e a tentar fazer diferente todos os dias. A esses vai doer. Que  doa!
Essa reforma deve ser feita tendo por base a ideia de que um  estagiário como o André, brilhante, depois de seis meses a pagar para  trabalhar, não pode não ser absorvido por uma empresa que dá nove  milhões de lucro. Não pode. Doa a quem doer. Se para isso é preciso  flexibilizar o despedimento do medíocre, do preguiçoso, do incompetente,  vamos a isso. Um país que desperdiça a geração do André é um país  condenado. Estes miúdos já não exigem um emprego para a vida. Querem  apenas uma oportunidade.
Bem, deixemo-nos de utopias. Quando o poder é financeiro e os líderes  medíocres, já toda a gente percebeu onde é que isto vai parar. Os  deputados que alteram a Lei trabalham nas sociedades de advogados que  prestam serviços às empresas interessadas em despedir. Está tudo dito.  Um pouco como o contrato da barragem do Tua. O ministério do Ambiente  tutela parte do processo e o contrato de concessão com a EDP, que  pressupõe uma indemnização de quase 100 milhões de euros em caso de  quebra, tem sido seguido pela antiga firma de advogados da ministra.
Deixemo-nos de utopias, de facto. Esta será mais uma reforma perdida  para a maioria. O André continuará a enviar currículos. As empresas vão  aproveitar a crise e a Lei. Um dia, o André acordará cansado e sem forma  de continuar a trabalhar de borla em nome do sonho. Ou emigra, ou acaba  na caixa do hipermercado para pagar a renda da casa que partilha com os  amigos. “Não há drama”, grita a geração do poder. Pois não. Nem futuro.
In http://www.e-clique.com/destaque/geracao-andre/
 
Muito bom! Conheço um André, que está em jornalismo, já estagiou num jornal onde fez de tudo como este André e que só não era bom, como era muito bom, brilhante, aliás. Sempre o foi na vida académica e foi-o na prática, e tal como este André nõ houve lugar para ele. Aliás havia, mas seria sempre explorado, sem horas para a vida privada. Preferiu prosseguir para mestrado, a ver se a situação no país melhora e se começa a haver lugar para os Andrés deste país.
ResponderEliminarÉ uma pena. Boa sorte para todos estes talentosos Andrés!!!
ResponderEliminarEste André, foi colega de redação do meu irmão. Uma pena, para dizer a verdade.
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