quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Cartas de Inglaterra - Eça, sempre!


Ler as 'Cartas de Inglaterra' estando a viver em Inglaterra é uma experiência muito engraçada. Eça, o nosso génio literário maior, é sempre contemporâneo. Uma engrenagem de palavras que tão bem descrevem o tecido social britânico. Esta 'passagem' sobre Londres está fenomenal. E só me pergunto porque não comecei a ler estas crónicas mais cedo... 

...«Como sabem, Londres só é habitado desde os começos de Maio até aos primeiros dias quentes de Agosto. O resto do ano, Londres é a caída Palmira ou a tenebrosa planície do deserto da Petreia. Ficam lá, é verdade, entre três a quatro milhões de humanidade: mas é uma humanidade subalterna, feita de barro vilão, sem valor social em Inglaterra: é a humanidade que não tem castelos, nem parques de três léguas, nem o seu nome no Livro de Ouro, nem iates de luxo para bordejar nas costas da Escócia; é a humanidade que não tem nas artérias o famoso sangue normando, esse sangue invejado, mais precioso que o de Cristo, cantado por todos os poetas da corte, e que foi importado pelos brutamontes cobertos de ferro e peludos como feras que acompanharam a essas ilhas Guilherme da Normandia. E enfim a humanidade que Carlos Stuart, o Bem Amado, chamava a canalha, e que o grande sacerdote da Bela Helena, o pobre Offenbach, designava, com tanto critério, pelo nome de vil multidão – é o trabalhador, o artífice, o artista, o professor, o filósofo, o operário, o romancista, tudo o que pensa, cria e produz.
É esta fresca ralé que fica em Londres: de modo que apenas a humanidade superior, os dez mil de cima, como aqui tão pitorescamente se diz, partem para os seus castelos, as suas vilas à beira-mar, ou os seus iates – Londres, apenas habitada pela turba abjecta, torna-se sobre a face da Terra como a lamentável Cacilhas.»...

In 'Cartas de Inglaterra', Eça de Queiroz

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