O par facilitismo-economicismo está a arrasar o futuro do país.
Por estupidez ou perseverança - que estão a tornar-se sinónimos, e não é por culpa do medíocre e empolado acordo ortográfico, porque no Brasil a perseverança tem sido o contrário da estupidez - aguardo o dia e a hora em que Portugal se decidirá a fazer contas ao seu grande tesouro nacional: a cultura. Os chineses podem exceder-nos na produção de têxteis ou de sapatos. No virar do milénio dizíamos que os venceríamos pela "qualidade". Pela "qualidade", isto é, pela melhor selecção dos materiais, pelo rigor nos acabamentos, pela criatividade e ousadia dos modelos, já muitos outros países nos tinham ultrapassado. Agora, os chineses estão também a afinar-se nesse capítulo. Claro que o modelo económico chinês não pode ter futuro - a tê-lo, isso significaria o fim da espécie humana. O capitalismo desenfreado, seja na versão ditatorial (que é a da China) ou na mais rasa das versões democráticas (a do salve-se quem puder, que os Estados Unidos estão a corrigir e que o Japão ainda não percebeu que é fatal) redunda em níveis tóxicos de injustiça social, desespero e morte. O que Portugal tem de único a oferecer ao mundo é claríssimo: a força do seu património cultural. Isto mete-se pelos olhos dentro de qualquer estrangeiro que nos visite - além do clima e da paisagem. Perguntam por livros, esses estrangeiros, coitados: querem, imaginem, comprar álbuns com boas fotos e textos sobre as nossas jóias museológicas, e não os encontram. Querem pagar visitas guiadas que não existem à Lisboa de Pessoa. Querem gastar o dinheiro deles em memórias nossas - mas nós não queremos. Querem entrar no Pavilhão de Portugal do Siza, dizem-lhes que está vazio, ou seja, em degradação, desde finais de 1998 - há 12 anos, 12 anos, senhores - e eles não acreditam. "Why?" - perguntam. Todos os dias me defronto com inúmeros why? que deixam embaraçada. Respondo: "É assim que o país funciona" e eles olham-me como se fizesse parte de uma seita de doidos sem remissão. Todos fazemos parte, queiramos ou não. É o árduo custo do patriotismo. Se ocupássemos o Pavilhão de Portugal, isso não seria considerado um acto patriótico, pois não? Talvez, se não vivêssemos na dita democracia - seria até um acto heróico. Mas dizem-nos que vivemos democraticamente, sim - por causa da liberdade de expressão, deve ser. Começo a pensar coisas terríveis: por exemplo, que a liberdade de expressão, só por si, é pouca coisa. Quem ganha 500 euros por mês, que espécie de liberdade tem? How?
Fazemos estudos e mais estudos - e nunca se vêem consequências práticas desse estudos. Aquela história de a Língua Portuguesa valer 17 por cento do PIB, que consequências tem? António Luís Vicente, subdirector da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento, fazia, no "Público" do passado dia 10, uma sugestão inteligente: que o Instituto Camões abra centros de ensino da Língua em pontos centrais de cidades estratégicas. Esses centros, acrescenta, poderiam ser autossustentáveis - não se trataria aí de oferecer cursos (como o Instituto Camões já faz, e bem, em inúmeras universidades e escolas por esse mundo) mas de os pôr à disposição do público normal, pagando - como fazem o Instituto Britânico ou a Alliance Française.
Mas a França é a prova de que também não basta ter esses centros. O espanhol está a substituir o francês como segunda língua estrangeira nas escolas, a uma velocidade desgraçada. Deixemo-nos de tretas: qualquer português percebe o espanhol e é capaz de ler um livro espanhol, sem ter aprendido a língua. Mas há um discurso de ataque em curso aos pais dos meninos, dizendo que "aprender espanhol a sério" é fundamental para que os infantes possam ter futuro nas universidades espanholas. Lérias: já há uma geração de portugueses que nunca aprendeu espanhol na escola a formar-se em medicina em Espanha. É muito mais difícil ir para a Sorbonne sem, de facto, ter aprendido francês. O que move estes discursos é o par facilitismo-economicismo, os valores dominantes que estão a cegar demasiados olhos e a arrasar o país. Não se "vende" uma língua só por causa dos negócios. Os americanos que aprendem português fazem-no pelo fascínio que sentem pela música e pela escrita dos brasileiros. Da música e da escrita de Portugal conhecem apenas dois nomes: Amália e Pessoa. E nem esses Portugal sabe exportar. Tudo isto é triste, e nem sequer é fado.
In jornal Expresso...
Por estupidez ou perseverança - que estão a tornar-se sinónimos, e não é por culpa do medíocre e empolado acordo ortográfico, porque no Brasil a perseverança tem sido o contrário da estupidez - aguardo o dia e a hora em que Portugal se decidirá a fazer contas ao seu grande tesouro nacional: a cultura. Os chineses podem exceder-nos na produção de têxteis ou de sapatos. No virar do milénio dizíamos que os venceríamos pela "qualidade". Pela "qualidade", isto é, pela melhor selecção dos materiais, pelo rigor nos acabamentos, pela criatividade e ousadia dos modelos, já muitos outros países nos tinham ultrapassado. Agora, os chineses estão também a afinar-se nesse capítulo. Claro que o modelo económico chinês não pode ter futuro - a tê-lo, isso significaria o fim da espécie humana. O capitalismo desenfreado, seja na versão ditatorial (que é a da China) ou na mais rasa das versões democráticas (a do salve-se quem puder, que os Estados Unidos estão a corrigir e que o Japão ainda não percebeu que é fatal) redunda em níveis tóxicos de injustiça social, desespero e morte. O que Portugal tem de único a oferecer ao mundo é claríssimo: a força do seu património cultural. Isto mete-se pelos olhos dentro de qualquer estrangeiro que nos visite - além do clima e da paisagem. Perguntam por livros, esses estrangeiros, coitados: querem, imaginem, comprar álbuns com boas fotos e textos sobre as nossas jóias museológicas, e não os encontram. Querem pagar visitas guiadas que não existem à Lisboa de Pessoa. Querem gastar o dinheiro deles em memórias nossas - mas nós não queremos. Querem entrar no Pavilhão de Portugal do Siza, dizem-lhes que está vazio, ou seja, em degradação, desde finais de 1998 - há 12 anos, 12 anos, senhores - e eles não acreditam. "Why?" - perguntam. Todos os dias me defronto com inúmeros why? que deixam embaraçada. Respondo: "É assim que o país funciona" e eles olham-me como se fizesse parte de uma seita de doidos sem remissão. Todos fazemos parte, queiramos ou não. É o árduo custo do patriotismo. Se ocupássemos o Pavilhão de Portugal, isso não seria considerado um acto patriótico, pois não? Talvez, se não vivêssemos na dita democracia - seria até um acto heróico. Mas dizem-nos que vivemos democraticamente, sim - por causa da liberdade de expressão, deve ser. Começo a pensar coisas terríveis: por exemplo, que a liberdade de expressão, só por si, é pouca coisa. Quem ganha 500 euros por mês, que espécie de liberdade tem? How?
Fazemos estudos e mais estudos - e nunca se vêem consequências práticas desse estudos. Aquela história de a Língua Portuguesa valer 17 por cento do PIB, que consequências tem? António Luís Vicente, subdirector da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento, fazia, no "Público" do passado dia 10, uma sugestão inteligente: que o Instituto Camões abra centros de ensino da Língua em pontos centrais de cidades estratégicas. Esses centros, acrescenta, poderiam ser autossustentáveis - não se trataria aí de oferecer cursos (como o Instituto Camões já faz, e bem, em inúmeras universidades e escolas por esse mundo) mas de os pôr à disposição do público normal, pagando - como fazem o Instituto Britânico ou a Alliance Française.
Mas a França é a prova de que também não basta ter esses centros. O espanhol está a substituir o francês como segunda língua estrangeira nas escolas, a uma velocidade desgraçada. Deixemo-nos de tretas: qualquer português percebe o espanhol e é capaz de ler um livro espanhol, sem ter aprendido a língua. Mas há um discurso de ataque em curso aos pais dos meninos, dizendo que "aprender espanhol a sério" é fundamental para que os infantes possam ter futuro nas universidades espanholas. Lérias: já há uma geração de portugueses que nunca aprendeu espanhol na escola a formar-se em medicina em Espanha. É muito mais difícil ir para a Sorbonne sem, de facto, ter aprendido francês. O que move estes discursos é o par facilitismo-economicismo, os valores dominantes que estão a cegar demasiados olhos e a arrasar o país. Não se "vende" uma língua só por causa dos negócios. Os americanos que aprendem português fazem-no pelo fascínio que sentem pela música e pela escrita dos brasileiros. Da música e da escrita de Portugal conhecem apenas dois nomes: Amália e Pessoa. E nem esses Portugal sabe exportar. Tudo isto é triste, e nem sequer é fado.
In jornal Expresso...
Mas que rico texto.
ResponderEliminarEu tenho por princípio dizer que o amanhã não existe, só o hoje está presente.O agora mesmo. Realmente nós Portugueses s´o nos lembramos do passado. A nossa rica lingua está cada vez mais cheia de ferrugem, renovar por aqueles que aprenderam connosco, para mim não me convence.
bem sei que a lingua portuguesa tem sofrido ao longo dos tempos transformações, mas nunca foram importadas daqueles a quem nós ensinamos.Como nação que somos e com a provecta idade que temos deveríamos saber para onde caminhar em passos certos e seguros. O novo acordo ortográfico, considero uma miséria de mau gosto, muito embora não seja a pessoa indicada para o afirmar. Continuarei até morrer , a escrever da maneira que aprendi quando dos bancos da escola. Tenho essa liberdade? Por aqui me fico. Desejo-vos um bom fim de semana.
Penso que já está a ser feito um esforço para promover o nosso país, mas infelizmente só o fazem pelo lado turístico mais óbvio das praias e do bom tempo. Concordo com o texto todo e em particular na ideia de que se devia apostar mais na nossa riqueza cultural. Só pela indústria não vamos lá e praias bonitas são o que mais há por esse mundo fora. Mas quantos países podem orgulhar-se de serem a pátria de génios como Pessoa, Saramago e Amália?
ResponderEliminarPor ser tão diverso, gosto muito do teu blog.
João: acho que sim, que tem essa liberdade :)!
ResponderEliminarEscarlate: Obrigada pela visita. Está sim, mas há muito tempo que venho a pensar que personalidades como a Amália, o Eça, o Pessoa e agora também Saramago, entre tantos outros, mereciam ter roteiros em Portugal. Eu, por exemplo, já visitei praticamente todos os lugares relacionados com a escritora Jane Austen, comprei livros e recordações e é uma alegria imensa poder estar perto dos ambientes e lugares de pessoas que admiramos. Adorava fazer o mesmo com Eça e com Aristides Sousa Mendes, que é ainda tão pouco enaltecido em Portugal. Somos um país soberbo e riquíssimo. Pena não tirarmos proveito. Abraço!
Sim, tens razão. Ah! Esqueci-me de mencionar que o lado religioso está bem desenvolvido, por exemplo, Fátima é uma máquina de fazer dinheiro.
ResponderEliminarRealmente a Escarlate tem razão, simplesmente esqueceu-se que os nossos políticos e altos gestores são os mais bem pagos do mundo. País de tretas...
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